Sertaneja pernambucana teve a vida transformada pelo amor à matemática

É na parede do quarto que Judite Ferreira da Silva guarda orgulhosa as honrarias que recebeu participando de competições de matemática. Moradora do Sítio Macambira, no distrito de Riacho do Meio, em São José do Egito, no Sertão pernambucano, Judite é o retrato da força e da perseverança do povo sertanejo. Aos 43 anos, ela convive com uma dificuldade severa de locomoção devido à Síndrome de Larsen, doença com a qual nasceu. 

Mas Judite não desiste facilmente dos seus objetivos. O nome escolhido para batizá-la, segundo a Bíblia, significa força, inteligência e bravura. Características que a acompanham desde muito nova. Apesar de ter começado a estudar tarde, Judite logo descobriu que era apaixonada por matemática. E essa paixão a levou longe. Quando estava na escola, participou de algumas edições da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep).

Judite guarda com orgulho medalha e certificados de competições que venceu. Foto: Arquivo Pessoal

Em seu primeiro desafio, no ano de 2007, ganhou medalha de bronze, guardada junto às duas menções honrosas e três certificados também recebidos em outras participações na competição. “Foi uma alegria muito grande quando eu ganhei essa medalha. Na época, eu até fui ao Recife para receber a medalha, mas quando cheguei lá a cerimônia já havia terminado. Então, o escritor Ariano Suassuna desceu do palco e veio me entregar a minha medalha. Foi muito emocionante”, lembra Judite.

Também foi a paixão pelos números que a levou à universidade. Décima primeira descendente de um casal de primos legítimos que gerou 12 filhos, Judite foi a primeira da família a iniciar um curso superior. O segundo filho de seu Sebastião e dona Josefa (já falecida) também nasceu com deficiência física e morreu antes de completar um mês. Judite foi forte, superou as dificuldades e todas limitações e surpreendeu até mesmo os médicos pelos quais havia sido avaliada.
Em sua primeira competição, Judite foi medalha de bronze e a recebeu das mãos de Ariano Suassuna. Foto: Arquivo Pessoal

“As pessoas achavam que eu iria morrer ainda novinha, mas eu estou aqui contando história. Peguei gosto pelos estudos e principalmente pela matemática. Fico pra morrer quando escuto alguém dizer que matemática é um bicho de sete cabeças. Tudo o que a gente faz nessa vida precisa de fazer uma conta”, ensina Judite. Além das premiações que recebeu, ela também tem em seu quarto livros, apostilas e exercícios que a ajudam a aprender ainda mais.

Somente aos 28 anos, Judite foi tentar na capital uma possível solução para a sua deficiência física. Após ser avaliada por médicos do Hospital Getúlio Vargas, na Zona Oeste do Recife, voltou para casa sem esperanças. “O doutor disse que não iria tocar em mim porque se a operação desse errado eu poderia ficar sem andar. Quando eu nasci, as coisas eram muito atrasadas e meus pais não tinham condições de procurar um médico”, explica.

Determinada, a moradora de São José do Egito, supera desafios. Foto: Arquivo Pessoal

Para se locomover, a sertaneja usa como apoio um pedaço de madeira. Ganhou um par de muletas, mas não se acostumou. Mesmo com todas as dificuldades, Judite seguiu sua rotina de estudos. As aulas na faculdade eram à noite. Durante o dia, estudava e ajudava a alimentar os pintos e galinhas que a família cria no sítio para comercializar. “Em tudo na vida a gente precisa da matemática. Até para calcular quanto de ração a gente vai gastar com a alimentação dos pintos é preciso usar a matemática”, destaca.

Quando começou o curso na Faculdade de Formação de Professores de Afogados da Ingazeira (Fafopai), Judite seguia, na companhia de uma sobrinha, em cima de uma moto, numa pista de barro, até chegar à rodovia onde pegavam o ônibus e percorriam cerca de 40 km até chegarem à sala de aula. Logo ganhou o carinho e a admiração dos colegas de turma e dos professores.

Técnicas matemáticas aprendidas por Judite são usadas na criação de pintos da família. Foto: Arquivo pessoal

Depois de alguns períodos estudando, por motivos pessoais, Judite decidiu abandonar as aulas e acabou perdendo a vaga. “Foi um período difícil pra mim. Eu não estava em condições de continuar os estudos. Aconteceram coisas que mexeram muito comigo”, desabafa. Dois anos se passaram e Judite retomou o sonho de se formar em matemática. Fez o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e voltou aos estudos, dessa vez ainda mais longe de casa. Entrou na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 

Para chegar à sala de aula do estado vizinho, ela acordava às 4h da manhã todos os dias, ouvindo o canto dos galos no sítio. Às 5h, o mototaxista chegava à casa da universitária para levá-la até o Centro de São José do Egito. Eram 12 quilômetros de trajeto na garupa da moto até o ponto de partida do ônibus que a levava para a cidade de Patos, na Paraíba. A segunda parte da viagem durava cerca de uma hora e meia. Eram pouco mais de 63 km até que Judite chegasse à sala de aula. Por dia, percorria 150 km para estudar a disciplina que ama.

Mas como tudo na vida de Judite nunca foi fácil, ela também precisou trancar o curso na UEPB. A distância e questões de saúde contaram muito para que ela tomasse essa decisão. Afastada da sala de aula, Judite segue ajudando os irmãos na criação de aves onde faz uso da matemática para que a família não tenha prejuízos financeiros. “Eu uso o Fator de Produção, que avalia a rentabilidade e a produtividade de um lote de frango. Observamos o ganho de peso diário, a mortalidade e a quantidade de ração que foi consumida. Para tudo isso é preciso da matemática”, destaca Judite.

Além dos números, Judite também tem habilidade para costura. Foto: Arquivo pessoal

Outra coisa que ela faz bem são as capas para sofás. Herdou da mãe a habilidade para a costura e produz as peças que cobrem os assentos da casa onde mora com o pai e das casas dos irmãos. Por enquanto, Judite não sabe quando retornará à universidade. Para terminar a licenciatura em matemática, faltam apenas duas disciplinas. “Neste momento, estou cuidando da minha saúde. Tenho algumas consultas ainda a fazer e até vou precisar ir a médicos no Recife”, conta Judite.

A Síndrome de Larsen, doença de Judite, é uma enfermidade rara que afeta as articulações, com deslocamentos e luxações, que acontecem ainda no útero materno. É de difícil diagnóstico e muitas crianças morrem logo após o nascimento. Porém, há relatos de adultos que levam uma vida considerada normal e convivem desde a infância com a síndrome. Para os médicos e os pacientes que apresentam a patologia, uma das maiores dificuldades da doença pode ser a falta de informações e a dificuldade de obter um diagnóstico decisivo

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